São os protestantes evangélicos? 

Nem todos os cristãos são evangélicos

* Por Ricardo Godim 

Considero inapropriado tratar todos os protestantes pelo termo "evangélico".

Insisto há algum tempo: o termo "evangélico" se refere historicamente ao grupo que sucedeu o fundamentalismo nos Estados Unidos ainda nas primeiras décadas do século XX. Quando se diz "evangélico" não se trata de descrever um grupo que se pretende coerente com o Evangelho.

Considero que as reivindicações teológicas desse grupo, que se autodenominou de "evangelical", são oriundas do fundamentalismo. Os evangelicals foram um segmento do protestantismo milenarista, predominantemente, branco, do sul norte-americano, alicerçado no conceito do "novo nascimento". Os evangelicals se popularizaram pregando a segunda vinda de Jesus, bem como a necessidade de conversão, de "aceitar Jesus como único e suficiente salvador".

Volto ao primeiro parágrafo. O protestantismo brasileiro não deve ser confundido com o movimento evangélico. Não é de bom alvitre colocar todos os "não católicos" (protestantes) como evangélicos. Há segmentos "não católicos" que a partir do trato com o texto bíblico até ao ecumenismo e à forma como encaram o conceito de missão com mais sintonia com o catolicismo progressista do que com os evangelicals propriamente ditos.

A generalização de considerar todos os "não católicos" como evangélicos, ao contrário do que se pretende, não ajuda. Igrejas que fazem crítica literária à Bíblia e com uma hermenêutica que denuncia a realidade da injustiça social, o patriarcado, e milita contra o racismo e a favor da inclusão de grupos LGBTI+, mostram muito pouca afinidade com os evangélicos que propõem um avivamento moralista ou uma retomada do Ocidente, recuperando a tradição judaico-cristã.

Se debaixo do guarda-chuva evangélico abrigarem igrejas tradicionais e progressistas (Batista, Presbiteriana, Metodista), pentecostais (Assembleia de Deus, Brasil para Cristo), ao extremo neopentecostal (Universal, Renascer, Internacional da Graça), será necessário descartar as discordâncias que progressistas fazem ao literalismo e ao proselitismo das "cruzadas para ganhar almas para Jesus".

Acreditar que o termo evangélico engloba todos os não católicos, pode ser um esforço de desconsiderar os protestantes que se distanciaram, desde o começo, das reivindicações fundamentalistas. Dietrich Bonhoeffer, C. S. Lewis, Martin Luther King, Rubem Alves e tantos outros jamais se identificariam com o que se testemunha na televisão, nas megaconcentrações em estádios e praças públicas, ou com a agenda do movimento evangélico.

Alinhar os não católicos como evangélicos (mesmo sabendo das idiossincrasias que separam Luteranos, Anglicanos, Presbiterianos) consegue a proeza de firmar entre formadores de opinião a má reputação dos cristãos. E cimenta na sociedade a narrativa que nivela cristãos como reacionários, conformados com uma mentalidade de gueto, promotores de ódio à cultura, com superficialismo ético e vendidos ao pragmatismo do mercado.

Não basta afirmar que o movimento evangélico já não guarda grandes semelhanças com o protestantismo, aquele que se tornou conhecido com a Reforma Luterana do século XVI. É preciso mostrar que as raízes históricas do movimento evangélico o ligam muito mais aos evangelistas itinerantes norte-americanos que previam o fim do mundo, bem como às igrejas "avivalistas" da Nova Inglaterra, no século XIX.

Pouco antes da virada do século XX, pregadores norte-americanos se apressavam em anunciar: Jesus vai voltar uma segunda vez. Seu retorno seria repentino. Ele viria para arrebatar seu povo até as nuvens, retirando-os de um mundo em ruínas. Com essa escatologia, ficava imperioso salvar almas; o planeta agonizava, condenado; mas Deus pouparia os que "aceitassem a Jesus".

Darwin, Marx, Nietzsche e um pouco depois, Freud, eram ícones da decadência. Mas a maior prova dessa ameaça que condenava o mundo vinha da ciência. A Teoria da Evolução contestava a versão bíblica da criação, e caso a Bíblia ficasse em xeque, toda a revelação perderia o valor. Se conseguissem retirar o "fundamento" da criação de Adão e Eva, solapariam a esperança da volta de Cristo.

Com esse pânico, o fundamentalismo se fortaleceu nas escolas de teologia, nos seminários. Uma "resposta racional" da teologia confrontaria os ataques a Deus e à sua palavra. O fundamentalismo se tornou assim o esforço de professores para preservar o que se considerava como os "pontos fundamentais da fé".

Acontece que fundamentalistas, por volta de 1920, resolveram processar um professor ginasial que lecionava sobre a teoria da evolução. Ganharam mas foi uma vitória de Pirro, um tiro no pé. O advogado do professor perdeu a causa. Mas, espertíssimo, conseguiu colocar os fundamentalistas em um constrangimento nacional. Eles acabaram com a pecha de obscurantistas, retrógrados, intratáveis.

Envergonhados com o vexame, teólogos fundamentalistas buscaram se distanciar do movimento. Tentaram elaborar uma teologia mais "simpática", menos "obtusa", "mais "popular". Porém, nunca, em tempo algum, que negasse os principais pressupostos do fundamentalismo: Inerrância das Escrituras, nascimento virginal de Jesus, realidade factual dos milagres, sua ressurreição física e seu retorno iminente.

Billy Graham, o famoso evangelista, fez parte da primeira leva de "evangelicals". Era boa pinta, carismático, dialogava com católicos e pentecostais. Seu nome consta entre os primeiros que, sem se distanciar do fundamentalismo, desejavam arejar a "verdadeira fé".

Com o sucesso de Billy Graham, os "evangelicals" cresceram mundialmente. Enquanto igrejas históricas amargavam quedas no número de fieis, os evangelicals só aumentaram. Com a ambição da sair da cerca estreita em que os fundamentalistas se encurralaram, os "evangelicals" (alguns se apropriaram desse termo no Brasil e se chamam até hoje de "evangelicais") continuaram a propor certo diálogo com a cultura, com as ciências e com as artes.

Segundo eles, era possível manter os alicerces do fundamentalismo (pecado de Adão e Eva históricos, nascimento virginal de Jesus, teologia sacrificial, escatologia milenarista, inerrância das Escrituras) e ser pop, moderno.

Vale deixar claro: embora com mais jogo de cintura nas relações com os diferentes (ecumenismo pontual, valorização das artes e certa abertura para as ciências), os evangelicais brasileiros também nunca abriram mão de suas raízes fundamentalistas.

Anos mais tarde, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, confrontados com questões graves, o movimento evangélico seguiu em frente sem se importar em criticar os pressupostos da sua pretensa ortodoxia.

Devido a essa recusa, igrejas batista insistiram - algumas ainda insistem - em negar a ordenação feminina. Só no final do século XX, a Convenção Batista do Sul reconheceu o erro de apoiar a escravidão. Quase a totalidade dos evangélicos acredita que sem o rito de levantar a mão e se ajoelhar em um apelo para "aceitar a Jesus" todos vão para o inferno.

Muitos ainda acusam o ecumenismo como estratégia da Igreja Católica para cooptar os protestantes e subjugar a "verdade ao poder do Vaticano". Homossexuais, considerados pecadores e pervertidos devido ao pecado de Adão, continuam a ser orientados a manter a castidade ou buscar "cura na Palavra de Deus", sob pena de arderem no inferno.

Resultado, a proposta inicial dos evangélicos de passar a ser um grupo mais arejado que o fundamentalismo nunca valeu. A parede ficou caiada, mas o interior permaneceu tão intolerante quanto os predecessores avivalistas e milenaristas.

Como no Brasil, o movimento evangélico se firmou com a chegada de missionários americanos e depois nas ondas pentecostais, pode-se afirmar: o fundamentalismo descreve os evangélicos. Mesmo com a neopentecostalização, evangélicos jamais abriram mão de pelo menos um fundamento: a "inerrância das Escrituras".

A agenda moralista, pragmática e intelectualmente resistente dos antigos evangélicos se adaptou e virou o que se chama de neopentecostalismo. Pode-se acusar o neopentecostalismo de tudo, dizer que adotam uma teologia sincrética e mágica, mas ficaram preservados como absolutos: a bibliolatria e a pregação da urgência da "conversão" para ir para o céu.

Multiplicam-se pregadores carismáticos, "descolados", moderninhos, cenográficos, mas todos fundamentalistas. Evangélicos, de posse da teologia sistemática, são fundamentalistas com uma fetichização do texto. A verdade absoluta da "Palavra de Deus" se mantém na prateleira inquestionável. Assim, com leitura literal, os milagres servem de argumento para validar que Deus não fica preso às questões estruturais de um país com um sistema de saúde em ruinas ou de uma economia perversa. A ação sobrenatural de Deus virou instrumento para enfrentar a injustiça e o abandono. Levítico serve para amaldiçoar homossexuais. E Paulo ainda diz às mulheres que se mantenham sujeitas aos homens.

Se o neopentecostalismo virou a versão evangélica com ênfase no sobrenatural, as suas afinidades com as igrejas evangélicas históricas têm a ver no literalismo bíblico. Se, ao contrário dos primeiros missionários evangélicos, em que o culto visava gerar santidade, os pentecostais querem encontrar o jeito de conseguir um milagre; se, ao contrário dos cristãos protestantes deixam de almejar vida eterna e passam a querer achar o macete de "mover o braço de Deus", ambos usam as mesmas chaves de interpretação da Bíblia.

Daí a pergunta: por que evangélicos relutam em denunciar neopentecostais como divergentes? A razão é simples: os neopentecostais afirmam (mesmo que neguem na prática), categoricamente, reconhecer a Bíblia como "única regra de fé e prática". E para um fundamentalista essa frase vale como senha. Daí concluem: "os neopentecostais são esquisitos, mas um dos nossos". Por que um evangélico trata qualquer "não católico" (protestante) progressista como herege, apóstata e inimigo da fé? "Porque ele relativiza a Palavra de Deus".

Insisto no argumento: não é possível tratar todos os cristãos como evangélicos.

Soli Deo Gloria



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